domingo, 28 de março de 2010

5.ª semana: Congresso Internacional do Medo


O desafio desta semana é diferente: deverão gravar uma leitura deste poema e enviála para avaliação no Moodle



Congresso Internacional do Medo

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

Carlos Dymmond de Andrade,
Antologia poética

domingo, 21 de março de 2010

4.ª semana: Mário de Carvalho, «In Excelsum»



In excelsum


Num arranha-céus de Lisboa, à Avenida João XXI, trabalhava certo escriturário que primava em ser o primeiro a chegar à firma Rainbow & Sunshine, Jacob Benoliel, SARL, sedeada no sexto andar. O escriturário chamava-se João Mendes, salvo erro, e era velho na casa. A sua feição madrugadora trouxera-lhe a incumbência de abrir as portas do estabelecimento todas as manhãs.
Quando Jacob Benoliel Júnior comparecia, invariavelmente, pelas nove e meia, já o João Mendes se sentava à secretária, de calculadora na mão, a conferir facturas, ajudado de ventoinha ou de escalfeta conforme se tratasse de Verão ou de Inverno.
Uma ocasião, João Mendes chegou invulgarmente cedo. Cumprimentou a porteira que, de cigarro na boca e gestos convictos, baldeava o vestíbulo, abriu a caixa do correio, por essa hora vazia, e entrou no elevador. Foi a porteira a última pessoa que o viu e que com ele trocou palavra.
Como de ordinário, João Mendes premiu o botão do sexto andar e o elevador arrancou, com um silvo ligeiro e um suave toque de ferragens. Entretanto, como de costume, foi pensando no trabalho que havia a fazer nessa manhã: era a época do balanço, nem tudo corria bem, e o João Mendes sentia-se preocupado e inquieto.
Ia nisto e não deu por que o elevador ultrapassava o sexto andar e continuava sempre para cima. Só se sobressaltou quando, a uma velocidade que lhe pareceu excessiva, se apercebeu de que tinha passado a porta do 17.ºe último andar.
Era a ocasião de tocar o botão de paragem. Mas o elevador não parou. João Mendes premiu com insistência o botão vermelho do alarme. E o elevador sempre a subir, numa velocidade agora quase vertiginosa. Com surpresa e terror, receoso de qualquer impacte, o escriturário via passarem rapidamente os grumos ásperos da tinta das paredes.
Em dado momento começou a fazer frio. O homem acocorou-se a um canto e puxou para cima as bandas do casaco. Depois veio um período de calor, o escriturário resignou-se às mangas de camisa e teve de limpar amiúde o suor com o lenço. Em trepidação regular e suave, o elevador continuava a sua ascensão.
Neste comenos, o escriturário perdia a compostura, rompia aos pontapés e aos murros nos painéis e espelhos do elevador. Gritava. Uivava. Mas a marcha não se deteve e o elevador subia sempre, em cadência acelerada. Pela porta passavam, cada vez mais rápidas, as manchas de pintura, os vincos de paredes exteriores. Houve um momento em que as luzes baixaram de intensidade. Outro em que se tornaram mais fortes. Prostrado, o escriturário viu-se iluminado sucessivamente por todas as cores do arco-íris. Depois vieram os ruídos: ou em zumbido, muito leve, sibilante, ou em roncar pesado de turbina. Ter-se-iam passado anos ou séculos. Passou-se um sem tempo. Aturdido, o escriturário, acocorado, cobria a cabeça com as mãos. Lasso, deixava-se cair, enrodilhado para ali, quase sem acordo. E o elevador prosseguia em subida veloz.
Um dia, a marcha abrandou sensivelmente. O escriturário sobressaltou-se e levantou o olhar. O elevador imobilizava-se.
Então os painéis do elevador desapareceram, sumiu-se a parede em frente e tudo ficou mergulhado numa luz opalina, brilhante, quase compacta. Com dificuldade, o escriturário soergueu-se, piscando os olhos e alisando desajeitadamente os vincos do casaco.
E ouviu uma voz que dizia:
- São imprevisíveis os caminhos que a Mim conduzem.

Fonte: Mário de Carvalho, A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho, 4.ª ed., Lisboa, Caminho, 1995.

domingo, 14 de março de 2010

3.ª semana: Quando um menino quer morrer aos 12 anos


Quando um menino quer morrer aos 12 anos

Para a generalidade de nós, que não somos psicólogos, psiquiatras ou pedopsiquiatras, a notícia do suicídio de um rapaz de 12 anos suscita uma óbvia inquietação: o que leva um ser humano desta idade a recorrer a um acto tão definitivo, um acto que revela não só um supremo desprezo pela vida como uma perturbadora consciência da morte e dos seus efeitos? No fundo, como pode um menino de 12 anos pensar em morrer e não pensar em viver, não pensar só em ser menino?
O que terá levado Leandro Pires, tenro aluno do sexto ano da Escola Luciano Cordeiro, em Mirandela, a sair do estabelecimento de ensino à hora do almoço, na companhia do irmão gémeo e de duas primas? O que terá levado Leandro Pires a descer de uma ponte até à margem do rio? O que terá levado Leandro Pires a tirar as roupas e confiar o destino aos caprichos da corrente do Tua? O que terá levado Leandro Pires a um tal estado de obstinação que nem mesmo o irmão gémeo conseguiu demovê-lo?
Há cerca de um ano, Leandro Pires, o Leandro Pires de 12 anos, este menino de 12 anos, esteve internado no hospital depois de ter sido agredido violentamente por colegas. E agredido violentamente por colegas significa ter sido pontapeado na cabeça. Não estamos, pois, perante um acesso de loucura momentâneo desses mesmos colegas, de acções isoladas.
Havia um historial de violência psicológica e física protagonizado por aqueles que com ele partilhavam o espaço escolar. Os amigos sabiam que o Leandro era a vítima e sabiam quem eram os agressores. A escola tinha obrigação de saber. Para mais, quando há outros casos que lhe terão sido reportados. Educar não é só debitar programas curriculares. É também proteger, cuidar. Defender.
Não conheci o Leandro nem conheço os seus colegas. Mas não julgo ser preciso. Esta triste história vai tendo, infelizmente, paralelo em várias escolas por esse país fora. Casos de alunos que sofrem pressões de tal forma insuportáveis que têm dificuldade em dormir, ganham aversão ao ensino, vivem aprisionados numa caverna de medos, são obrigados a entregar o dinheiro ou o telemóvel aos pilantras mais velhos, que atacam dentro e fora dos muros da escola, quase sempre em grupo, como as hienas.
Mas o caso do Leandro, podendo não ser exclusivo, deve tornar-se exemplar. Os vários estudos e opiniões já formados sobre o "bullying" (anglicismo que designa este tipo de violência) encontram na história deste rapaz a dimensão humana de um fenómeno tratado quase exclusivamente na esfera académica.
Depois disto, as escolas, os professores, os responsáveis políticos da área, os encarregados de educação não podem continuar a passar ao lado das evidências. O "bullying" ganhou um rosto. As escolas deviam criar ou reforçar as condições (e não estou a referir-me ao gabinete) que permitam aos alunos que são vítimas denunciar, de uma forma discreta, as sevícias de que são alvo. Porque, na maior parte dos casos, trata-se de alunos que reprimem as frustrações, que nem mesmo em casa conseguem desabafar.
Mais: é imperioso que pais e educadores abandonem em definitivo a tese complacente e retrógrada que defende que este tipo de comportamentos faz parte do normal processo de crescimento de uma criança. Que levar uns amassos ajuda a criar defesas. Porque isso significa dizer que, no caso do Leandro e de outras potenciais vítimas, a culpa não é de ninguém. Pior: que a culpa é da sociedade.
Esperemos, por isso, que o clássico inquérito já mandado instaurar pelo Ministério da Educação não vá pelo mesmo caminho. A culpa não pode ser da sociedade. A memória do Leandro não merece.

Jornal de Notícias 05-03-2010

domingo, 7 de março de 2010

2.ª semana: Amor


Miguel Esteves Cardoso

AMOR

«Dyz tu a mim meu coraçon porque m’a isto nam calo, poys ves nam chegua payxom deste cuydado que falo»

CANCIONEIRO DE RESENDE, TOMO 1

Mesmo que Dom Pedro não tenha arrancado e comido o coração do carrasco de Dona Inês, Júlio Dantas continua a ter razão: é realmente diferente o amor em Portugal.
Basta pensar no incómodo fonético de dizer «Eu amo-o» ou «Eu amo-a». Em Portugal aqueles que amam preferem dizer que estão apaixonados, o que não é a mesma coisa, ou então embaraçam seriamente os eleitos com as versões estrangeiras: «I love you» ou «Je t’aime». As perguntas «Amas-me?» ou «Será que me amas?» estão vedadas pelo bom gosto, senão pelo bom senso. Por isso diz-se antes «Gostas mesmo de mim?», o que também não é a mesma coisa.
O mesmo pudor aflige a palavra amante, a qual, ao contrário do que acontece nas demais línguas indo-europeias, não tem em Portugal o sentido simples e bonito de «aquele que ama, ou é amado». Diz-se que não sei-quem é amante de outro, e entende-se logo, maliciosamente, o biscate por fora, o concubinato indecente, a pouca vergonha, o treco-lareco machista da cervejaria, ou o opróbio galináceo das reuniões de «tupperwares» e de costura.
Amoroso não significa cheio de amor, mas sim qualquer vago conceito a leste de levemente simpático, porreiro, ou giríssimo. Quem disser «a minha amada» - ou, pior ainda, «o meu amado» - arrisca-se a não chegar ao fim da frase, tal o intenso e genuíno gáudio das massas auditoras em alvoroço. Amável nunca quer dizer «capaz de ser amado», e, para cúmulo, utiliza-se quase sempre no pretérito («Você foi muito amável em ter-me convidado para a inauguração da sua Croissanterie»). Finalmente um amor é constantemente aviltado na linguagem coloquial, podendo dizer-se indistintamente de escovas de dentes, contínuos que trazem os cafés a horas, ou casinhas de emigrantes. (O que está a acontecer com o adjectivo querido constitui, igualmente, uma das grandes tragédias da nossa idade.).
Talvez a prática mais lastimavelmente absurda, muito usada na geração dita eleita, seja aquela de chamar amigas às namoradas. Isto porque os portugueses, raça danada para os eufemismos, também têm vergonha das palavras namorado e namorada. Quando as apresentam a terceiros, nunca dizem «Esta é a Suzy, a minha namorada» - dizem sempre «Esta é uma amiga minha, a Suzy», transmitindo a implícita noção, muito cara ao machismo lusitano, de que se trata de uma entre muitas. E, também assim, como se não lhes bastasse dar cabo do Amor, vão contribuindo para o ajavardamento semântico da Amizade.
Isto tudo em público - claro - porque, em particular, a sós, funciona a síndrome plurissecular do «só-nós-dois-é-que-sabemos» e os portugueses tornam-se pinga-amores ao ponto de se lhes aconselhar vivamente a utilização de coleiras de esponja muito grossa. Nisto, o sexo forte é bastante mais vira-casacas que o fraco. Em público, são as amigas, o Guincho, os drinques e as apreciações estritamente boçais do sexo oposto. Dêem-lhes, porém, cinco minutos a sós com a suposta «amiga» e depressa verão todos os índices aceitáveis de pieguice, choraminguice e «love-and-peace» babosa e radicalmente ultrapassados; ao ponto de fazer confundir a Condessa de Segur com Joseph Conrad. As infelizes «amigas» reprimem com louvável estoicismo o enjoo, e aconselham-lhes a moderação. As mais estúpidas não compreendem e vão depois dizer às amigas que os namorados têm feitios muito complexos, porque quando estão acompanhados, são uns brutos do bilhar grande, e quando estão sozinhos transformam-se em donzelas delicodoces, inexplicavelmente ainda mais nauseabundas do que elas.
A retracção épica a que os portugueses se forçam no uso próprio das palavras do amor, quando o contexto é minimamente público, parece atirá-los ilogicamente, para uma confrangedora catarse de lamechices cada vez que se encontram sós com quem amam. Dizer «Eu amo-te» é dizer algo que se faz. Dizer «Eu tenho uma grande paixão por ti» é bastante menos do que isso - é apenas algo que se tem, mais exterior e provisório. Os portugueses, aliás, sempre preferiram a passividade fácil do «ter» à actividade, bastante mais trabalhosa, do «fazer».
A confusão do amar com o gostar, do amor com a paixão, e do afecto, tornam muito difícil a condição do amante em Portugal. Impõe-se rapidamente o esclarecimento de todos estes imbróglios. Que bom que seria poder dizer «Estou apaixonado por ela, mas não a amo», ou «já não gosto de ti, embora continue apaixonado» ou «Apresento-te a minha namorada», ou «Ele é tão amável que não se consegue deixar de amá-lo». Estas distinções fazem parte dos divertimentos sérios das outras culturas e, para podermos divertirmo-nos e fazê-las também, é urgente repor o verbo «amar» em circulação, deixar-mo-nos de tretas, e assim aliviar dramaticamente o peso oneroso que hoje recai sobre a desgraçada e malfadada paixão.

Fonte: Miguel Esteves Cardoso, A Causa das Coisas, 4.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 1987.

Esta crónica já tem mais de 20 anos. Será que o amor em Portugal ainda é como Miguel Esteves Cardoso o caracteriza na sua crónica?

domingo, 28 de fevereiro de 2010

1.ª semana: Eles comem tudo, desde que não tenha alho


Eles comem tudo,
desde que não tenha alho


Ao que parece, alguém se enganou com o seu ar sisudo e lhes franqueou as portas à chegada: os vampiros estão em todo o lado. Na literatura, no cinema, na televisão, aparecem vampiros a toda a hora. Saiu uma antologia portuguesa de contos com vampiros, há filmes e livros estrangeiros cheios de vampiros, e quase todos os programas de televisão incluem um vampiro: nas telenovelas, lá está um vampiro; nas séries juvenis, lá está um vampiro; nas conferências de imprensa do ministro das Finanças, lá está um vampiro.

Por que razão abandonaram os vampiros a Transilvânia e vieram povoar o resto do mundo? Por uma razão artística muito forte: porque vendem. Aparentemente, o público do início do século XXI tem um interesse sem precedentes pelos vampiros - o que, diga-se, não é fácil de perceber. Os vampiros são um monstro que não inspira particular terror. São, no fundo, um monstro totó. Gostam de sangue, mas isso também os apreciadores de cabidela, e eu não tenho medo deles. Não podem apanhar sol, como as crianças que têm a pele leitosa. Têm medo de alhos, que é das fobias mais maricas que uma pessoa pode ter. E morrem se lhes espetarem uma estaca de madeira no coração. Olha que idiossincrasia tão gira. Ao contrário do que acontece com o resto de nós, os vampiros não duram muito se lhes empalarem o coração. De resto, é um facto que desejam morder-nos o pescoço, o que não deve ser agradável. Mas, se o conseguirem, transformam-nos em vampiros imortais. Que transtorno tão grande. Um monstro que, se não tivermos cuidado, nos dá a vida eterna. Há religiões que, a troco de muito dinheiro, não oferecem metade. Por mim, não me importo de ficar com os caninos um pouco maiores se é esse o preço a pagar para viver para sempre. Nem precisam de me prometer a eternidade: perante a perspectiva da morte, até aceito ficar com a dentição da Teresa Guilherme se me derem mais duas semanas de vida.

O mais surpreendente nestes vampiros modernos é o modo como a adaptação aos tempos actuais os tornou ainda menos assustadores. Apaixonam-se com muita facilidade por raparigas humanas, o que lhes agrava as olheiras. Desenvolveram uma ética que não lhes permite fincar o dente em qualquer pescoço para saciar a fome. São monstros certinhos, que querem comportar-se como deve ser para terem uma vida social igual à das outras pessoas. São uma espécie de diabético que, em vez de tomar a injecção de insulina de vez em quando, toma um sucedâneo de sangue. Não são monstros, são pessoas doentes que querem fazer uma vida normal. É aborrecido. Os vampiros da minha infância andariam por aí a morder pescoços indiscriminadamente. A estes, só lhes falta que a ASAE apareça a proibi-los de sugar artérias em restaurantes. Bananas.

Fonte: Visão, 4-02-2010

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Promovendo a leitura

Este blogue tem como objectivo promover a leitura junto dos alunos do 10.º PTIG da Escola Secundária de Henriques Nogueira.. Cada Domingo será publicado um texto. Cada aluno terá de deixar um comentário a essa leitura antes que seja publicado o texto da semana seguinte, ou seja,até à meia-noite de sábado. O comentário tem de ter um mínimo de cinquenta palavras.

Boas Leituras!