domingo, 21 de março de 2010

4.ª semana: Mário de Carvalho, «In Excelsum»



In excelsum


Num arranha-céus de Lisboa, à Avenida João XXI, trabalhava certo escriturário que primava em ser o primeiro a chegar à firma Rainbow & Sunshine, Jacob Benoliel, SARL, sedeada no sexto andar. O escriturário chamava-se João Mendes, salvo erro, e era velho na casa. A sua feição madrugadora trouxera-lhe a incumbência de abrir as portas do estabelecimento todas as manhãs.
Quando Jacob Benoliel Júnior comparecia, invariavelmente, pelas nove e meia, já o João Mendes se sentava à secretária, de calculadora na mão, a conferir facturas, ajudado de ventoinha ou de escalfeta conforme se tratasse de Verão ou de Inverno.
Uma ocasião, João Mendes chegou invulgarmente cedo. Cumprimentou a porteira que, de cigarro na boca e gestos convictos, baldeava o vestíbulo, abriu a caixa do correio, por essa hora vazia, e entrou no elevador. Foi a porteira a última pessoa que o viu e que com ele trocou palavra.
Como de ordinário, João Mendes premiu o botão do sexto andar e o elevador arrancou, com um silvo ligeiro e um suave toque de ferragens. Entretanto, como de costume, foi pensando no trabalho que havia a fazer nessa manhã: era a época do balanço, nem tudo corria bem, e o João Mendes sentia-se preocupado e inquieto.
Ia nisto e não deu por que o elevador ultrapassava o sexto andar e continuava sempre para cima. Só se sobressaltou quando, a uma velocidade que lhe pareceu excessiva, se apercebeu de que tinha passado a porta do 17.ºe último andar.
Era a ocasião de tocar o botão de paragem. Mas o elevador não parou. João Mendes premiu com insistência o botão vermelho do alarme. E o elevador sempre a subir, numa velocidade agora quase vertiginosa. Com surpresa e terror, receoso de qualquer impacte, o escriturário via passarem rapidamente os grumos ásperos da tinta das paredes.
Em dado momento começou a fazer frio. O homem acocorou-se a um canto e puxou para cima as bandas do casaco. Depois veio um período de calor, o escriturário resignou-se às mangas de camisa e teve de limpar amiúde o suor com o lenço. Em trepidação regular e suave, o elevador continuava a sua ascensão.
Neste comenos, o escriturário perdia a compostura, rompia aos pontapés e aos murros nos painéis e espelhos do elevador. Gritava. Uivava. Mas a marcha não se deteve e o elevador subia sempre, em cadência acelerada. Pela porta passavam, cada vez mais rápidas, as manchas de pintura, os vincos de paredes exteriores. Houve um momento em que as luzes baixaram de intensidade. Outro em que se tornaram mais fortes. Prostrado, o escriturário viu-se iluminado sucessivamente por todas as cores do arco-íris. Depois vieram os ruídos: ou em zumbido, muito leve, sibilante, ou em roncar pesado de turbina. Ter-se-iam passado anos ou séculos. Passou-se um sem tempo. Aturdido, o escriturário, acocorado, cobria a cabeça com as mãos. Lasso, deixava-se cair, enrodilhado para ali, quase sem acordo. E o elevador prosseguia em subida veloz.
Um dia, a marcha abrandou sensivelmente. O escriturário sobressaltou-se e levantou o olhar. O elevador imobilizava-se.
Então os painéis do elevador desapareceram, sumiu-se a parede em frente e tudo ficou mergulhado numa luz opalina, brilhante, quase compacta. Com dificuldade, o escriturário soergueu-se, piscando os olhos e alisando desajeitadamente os vincos do casaco.
E ouviu uma voz que dizia:
- São imprevisíveis os caminhos que a Mim conduzem.

Fonte: Mário de Carvalho, A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho, 4.ª ed., Lisboa, Caminho, 1995.

1 comentário:

  1. Na minha opinião o teto está muito emocionante, pois com o escrituário cria sair do elevador e não conseguia, o elevador parecia que o estava a enviar para a morte, nunca parava, o elevador estava sempre a subir, a sbir, e nunca parava, até que o escriturário começou aos pontapés e murro ao elevador, mas nada o elevador estava intacto e a subir na mesma, até que as paredes do elevador se abriram.

    ResponderEliminar