domingo, 7 de março de 2010

2.ª semana: Amor


Miguel Esteves Cardoso

AMOR

«Dyz tu a mim meu coraçon porque m’a isto nam calo, poys ves nam chegua payxom deste cuydado que falo»

CANCIONEIRO DE RESENDE, TOMO 1

Mesmo que Dom Pedro não tenha arrancado e comido o coração do carrasco de Dona Inês, Júlio Dantas continua a ter razão: é realmente diferente o amor em Portugal.
Basta pensar no incómodo fonético de dizer «Eu amo-o» ou «Eu amo-a». Em Portugal aqueles que amam preferem dizer que estão apaixonados, o que não é a mesma coisa, ou então embaraçam seriamente os eleitos com as versões estrangeiras: «I love you» ou «Je t’aime». As perguntas «Amas-me?» ou «Será que me amas?» estão vedadas pelo bom gosto, senão pelo bom senso. Por isso diz-se antes «Gostas mesmo de mim?», o que também não é a mesma coisa.
O mesmo pudor aflige a palavra amante, a qual, ao contrário do que acontece nas demais línguas indo-europeias, não tem em Portugal o sentido simples e bonito de «aquele que ama, ou é amado». Diz-se que não sei-quem é amante de outro, e entende-se logo, maliciosamente, o biscate por fora, o concubinato indecente, a pouca vergonha, o treco-lareco machista da cervejaria, ou o opróbio galináceo das reuniões de «tupperwares» e de costura.
Amoroso não significa cheio de amor, mas sim qualquer vago conceito a leste de levemente simpático, porreiro, ou giríssimo. Quem disser «a minha amada» - ou, pior ainda, «o meu amado» - arrisca-se a não chegar ao fim da frase, tal o intenso e genuíno gáudio das massas auditoras em alvoroço. Amável nunca quer dizer «capaz de ser amado», e, para cúmulo, utiliza-se quase sempre no pretérito («Você foi muito amável em ter-me convidado para a inauguração da sua Croissanterie»). Finalmente um amor é constantemente aviltado na linguagem coloquial, podendo dizer-se indistintamente de escovas de dentes, contínuos que trazem os cafés a horas, ou casinhas de emigrantes. (O que está a acontecer com o adjectivo querido constitui, igualmente, uma das grandes tragédias da nossa idade.).
Talvez a prática mais lastimavelmente absurda, muito usada na geração dita eleita, seja aquela de chamar amigas às namoradas. Isto porque os portugueses, raça danada para os eufemismos, também têm vergonha das palavras namorado e namorada. Quando as apresentam a terceiros, nunca dizem «Esta é a Suzy, a minha namorada» - dizem sempre «Esta é uma amiga minha, a Suzy», transmitindo a implícita noção, muito cara ao machismo lusitano, de que se trata de uma entre muitas. E, também assim, como se não lhes bastasse dar cabo do Amor, vão contribuindo para o ajavardamento semântico da Amizade.
Isto tudo em público - claro - porque, em particular, a sós, funciona a síndrome plurissecular do «só-nós-dois-é-que-sabemos» e os portugueses tornam-se pinga-amores ao ponto de se lhes aconselhar vivamente a utilização de coleiras de esponja muito grossa. Nisto, o sexo forte é bastante mais vira-casacas que o fraco. Em público, são as amigas, o Guincho, os drinques e as apreciações estritamente boçais do sexo oposto. Dêem-lhes, porém, cinco minutos a sós com a suposta «amiga» e depressa verão todos os índices aceitáveis de pieguice, choraminguice e «love-and-peace» babosa e radicalmente ultrapassados; ao ponto de fazer confundir a Condessa de Segur com Joseph Conrad. As infelizes «amigas» reprimem com louvável estoicismo o enjoo, e aconselham-lhes a moderação. As mais estúpidas não compreendem e vão depois dizer às amigas que os namorados têm feitios muito complexos, porque quando estão acompanhados, são uns brutos do bilhar grande, e quando estão sozinhos transformam-se em donzelas delicodoces, inexplicavelmente ainda mais nauseabundas do que elas.
A retracção épica a que os portugueses se forçam no uso próprio das palavras do amor, quando o contexto é minimamente público, parece atirá-los ilogicamente, para uma confrangedora catarse de lamechices cada vez que se encontram sós com quem amam. Dizer «Eu amo-te» é dizer algo que se faz. Dizer «Eu tenho uma grande paixão por ti» é bastante menos do que isso - é apenas algo que se tem, mais exterior e provisório. Os portugueses, aliás, sempre preferiram a passividade fácil do «ter» à actividade, bastante mais trabalhosa, do «fazer».
A confusão do amar com o gostar, do amor com a paixão, e do afecto, tornam muito difícil a condição do amante em Portugal. Impõe-se rapidamente o esclarecimento de todos estes imbróglios. Que bom que seria poder dizer «Estou apaixonado por ela, mas não a amo», ou «já não gosto de ti, embora continue apaixonado» ou «Apresento-te a minha namorada», ou «Ele é tão amável que não se consegue deixar de amá-lo». Estas distinções fazem parte dos divertimentos sérios das outras culturas e, para podermos divertirmo-nos e fazê-las também, é urgente repor o verbo «amar» em circulação, deixar-mo-nos de tretas, e assim aliviar dramaticamente o peso oneroso que hoje recai sobre a desgraçada e malfadada paixão.

Fonte: Miguel Esteves Cardoso, A Causa das Coisas, 4.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 1987.

Esta crónica já tem mais de 20 anos. Será que o amor em Portugal ainda é como Miguel Esteves Cardoso o caracteriza na sua crónica?

6 comentários:

  1. na minha opiniao eu acho que o amor em portugal continua igual, as pessoas nao destinguem o amar do gostar, pensam que sao ambas sao iguais e ao dizerem a uma pessoa que gostam dela pensam que estam a dizer que a amam.
    joao miguel

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  2. Eu acho que á 20 anos as pessoas eram mais honestas e mais sinceras umas com as outras, e respeitavam mais os sentimentos dos seus parceiros. Hoje um "amo-te" diz-se a uma dúzia de pessoas. A meu ver a maior parte dos casais de hoje em dia estam juntos por interesse ou mesmo pela simples companhia, já não dão grande importancia ao amor ou á "pessoa certa", entram em rotina, esquecem o romantistos, pouco tempo depois veêm a divorciar-se. Antigamente havia outro respeito, não havia tanta liberdade, daí as pessoas agora não se respeitarem tanto como antes. Na minha opinião, com o passar dos anos a palavra "amor" vai perdendo o significado! Quando se ama deve ser para sempre, deve ser vivido, deve ser sincero e honesto.

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  3. Começo pelo fim... sou da opinião que esta crónica é "actual", porque , como é referenciado no inicio do texto, ainda algumas pessoas usam o chamado "estrangeirismo"... quanto ao texto gostei bastante de ler a opinião do cronista acerca de Amar e Apaixonar, porque acho que a maior parte das pessoas da nossa sociedade pensão que são sinónimos. Particularmente gostei da associação do machismo a este texto sobre Amor embora acho que era um tema que deveria ser explorado e exposto noutra crónica. Por fim gostei muito das citações utilizadas pelo cronista na parte final do texto, porque demonstram que é um cronista com um humor bastante inteligente. Ângelo Matos nº4 10ºPTIG

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  4. Na minha opinião o amor em portugal continua a ser como o autor da crónica fala, mas tem vindo a mudar um bocado. O sexo forte tem andado a mudar um bocado e já diz «Eu amo-a», as mulheres também tem vindo a mudar e também já dizem «Eu amo-o».

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  5. Eu acredito que hoje em dia vive-se o amor com a forma diferente por grande parte das pessoas.
    Acredito também que nesta vida moderna esta característica também se "entornaram" para o amor, mas acredito também que o amor puro existe com estas diferentes formas de amar de hoje em dia.
    Quando dizemos que são sinais do tempo, a forma mais simples que dizemos para explicar isto é fazendo uma analogia. Antigamente como os antigos diziam, mais do que hoje em dia, havia os casamentos já feitos mesmo antes dos noivos se conhecerem, por interesses familiares e financeiros, hoje em dia também existe só que de forma mais camuflada e adapta-se à vida de hoje.
    Acredito que o amor puro sempre existiu, o que existe de diferente é a forma de amor conveniente.

    Gostei desta crónica mas achei este texto excessivo.

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  6. Gosto do texto.
    A crónica fala do amor da paixão, e do que os distingue, por exemplo uma pessoa estar apaixonada por outra e não a amar. Uma pessoa estar com a sua/seu namorado/a e dizer esta é a minha amiga, e não dizer esta é a minha namorada/o. Fala da distinção de todas as frazes ditas sobre o amor e a paixão, em Portugal.

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